
A medida que o casamento chegava eu ficava mais triste, agora iria perder dois grandes amigos, obviamente vendo o quanto aqueles dois inúteis se amavam fui incapaz de criticá-los ou de opor-me ao casamento,e assim o tempo passava, e eu acabava me isolando mais... Teria de me acostumar com isso...Ficaria sem eles, eles iriam embora, não seria mais como antes, eu estava com tanto medo, não sabia explicar exatamente do que... Talvez porque percebia que a minha infância estava passando mais, agora eu era mais cobrada, eu era a mocinha, e vendo que meu irmão estava indo isso ficava mais claro... Eu o perderia... Nossa infância e brincadeiras estavam se perdendo, não iria mais ver Will levantar Gui pelo pé, como fazia quando ele tinha 5 aninhos, apenas para me fazer rir, eu sempre estava com eles, mamãe louca atrás de mim, e nós três escondidos no celeiro, onde sabíamos que ela não iria, morria de nojo e frescurites femininas,não iria mais fechar meus olhos e sonhar com gigantes, montanhas e lutas de espadas, escutando histórias de marinheiros que se aventuraram pelo novo mundo, não.... Agora eu seria Samara mulher do fulano, seja lá quem fosse ele, pois eu sabia que logo chegaria a minha vez.... Tinha esperança de conseguir me salvar... talvez fugir com Gui... Mas esse não era o pior.
Eu estava criando corpo de mulher.
Argh! Tinha coisa pior que isso? Agora até meu pai me proibia de sair com Gui para brincar com os garotos da rua, tinha que ficar em casa direto, mesmo o Gui constantemente ficando comigo para que eu não me entristecesse, ainda assim era um saco. Me sentia culpada, a culpa não era do meu doce irmão se o mundo machista agora me via como garota, quando eu nunca fui, era horrível estar presa num corpo feminino nojento sem poder brincar, e ainda por cima, meu irmão estava na odiosa adolescência, não queria prende-lo. Os amigos dele iam chamá-lo a todo momento e ele recusava, com sua face branca retorcida e escondida atrás da franja ruiva, tentando esconder sua raiva, que sabia não ser por mim, mas ainda assim me enchia de culpa.
-Vá Gui, depois me conte, se ficar aqui não terá como me animar, pelo menos me traga histórias.-Falei em um dia chuvoso, cansada de me sentir culpada e egoísta.
-Só vou quando você for comigo.-Falou tentando ser forte, mas eu via que a idéia o tentava, em dias de chuva os garotos paravam em uma taverna qualquer e ouviam marinheiros bêbados contarem suas aventuras, eu nunca entreva nelas, me enojava as taverneiras mal vestidas que aqueles panacas mirins babavam feito cachorros.
-Gui, o que esta tentando provar?-me irritei, odiava ver aquela face maravilhosa tendo que se decidir só para manter os mimos que sempre me dava.-Você esta me irritando, vá com eles, eu sei que quer, não percebe que não é mais como antes? Eu cresci,agora tenho que ser como elas!-Falei apontando para minha odiosa mãe e irmã metidinhas mais incrivelmente bonitas e arrumadas, as duas com seus cabelos loiros presos com grampos e sei lá mais o que tinha no meio, bordando algo inútil.
Gui me olhou magoado, sabia que para ele era tão difícil quanto para mim deixar nossa infância para traz, eu era sua amiga, melhor amiga, éramos os ruivinhos pimentas, os únicos ruivos dos filhos do casal Kenneth, afinal Elô e Will eram loiros como minha mãe, puxamos ao meu pai, que agora era grisalho, então parecíamos deslocados no meio do conjunto.
-Não quero te perder Sarah -Fala tão desolado que meu coração foi bruscamente esmagado por uma onda de arrependimento, Mas quando via seu rosto de Homem, afinal seus traços infantis agora eram só no leve arredondado da bochecha, que já se ia, e nos olhos quentes, fora isto o rosto já tinha uma barba que já crescia novamente,já tinha a face belamente dura e angulosa, parecia um dos cavaleiros que tanto admirava, sua musculatura já estava definida e já alcançava Will no tamanho,e ao mesmo tempo que aquilo me era estonteante, me magoava, quando olhava para ele percebia que estava certa, ele precisava ir, e eu ia perde-lo.
Lagrimas começaram a tomar meus olhos,e ele percebia, eu odiava chorar, e ele sabia, ele também odiava, aquilo nos fazia ver o quanto eu era frágil, apesar de tudo, o quanto eu era uma garota, mesmo não querendo. Ele me abraça fortemente, unidos naquilo que mais prezávamos e que logo iria acabar, nossa amizade cúmplice, nosso amor incondicional um pelo outro, pois não existia Gui e Sarah, eram os pestinhas, ou no máximo, um dos pestinhas, éramos nós, e não dois reles eus.
Eu era o seu coração, ele o meu.
Ao mesmo tempo que chorava desolada afundando minha cabeça no seu abdômen, ele encostava seu queixo no topo de minha cabeça, não podia ver sua face,mas sabia que deveria estar pensativa e torturada, odiava ver ele com aquele belo rosto que me era tão conhecido, retorcido por minha causa, eu sabia que ele não choraria, mas ia ficar vermelho, engolindo o pranto como um homem, o homem que eu não era, e isso se provava através das lagrimas que eu deixava em sua blusa perfumada, seu aroma que era mais meu do que dele, me pertencia, assim como ele todo, e eu sabia que pertencia a ele, e saber que seriamos afastados por algo tão inútil como costumes e o tempo nos trucidava.
-Gui, eu te amo. Te amo muito.-falei entre lagrimas, me desprendendo dele e olhando seus olhos incrivelmente verdes, assim como os meus. Ele me olha por poucos segundos, segura uma mecha cacheada de meus longos cabelos ruivos e fitando meu vestido castanho, com a outra mão tocando minha mão pálida e delicada repleta de calos, que examinava com orgulho, logo depois me puxa para ele e me abraça fortemente.
-Eu também minha pequena selvagem.-Ele fala me agarrando pela cintura e me erguendo no colo, afundando a cabeça em meus cabelos, tenho certeza que para esconder as lagrimas, e eu abraço seu pescoço soluçando desolada, tudo que eu mais amava estava partindo.
Por algum tempo ficamos assim, Gui me desce e me encara seriamente, seus olhos estavam sérios, e neste momento percebi que tinha algo mais, algo que ele me escondia, algo que ele sabia que iria me machucar, e era por isso que relutava em me deixar, como sabia disso? Além da convivência tinha algo mais,ele me olhou como sempre me olhava quando era ordenado a me esconder algo, como presentes em meu aniversario, mais estava agindo como agia quando junto comigo sabíamos que levaríamos uma surra por ter roubado jóias da mamãe para trocar por espadas com algum ferreiro, ou guando o pastor reclamava por algum desrespeito grave que cometíamos... Como quando enchemos a sua cama de aranhas, ou colocamos cobras em cima de sua roupa, para que tivesse que adiar a missa. Mas a diferença é que agora eu não sabia o que era, e era algo muito ruim, porque do contrario não seria tão relutante em se afastar, e era muito incomum não me repreender pelas lagrimas.
Acho que todo aquele meu isolamento me fez esquecer de algo, me fez não prestar atenção em algo, não perceber o que estava mais perto do que imaginava, iríamos nos separar. Isso era fato. A pergunta era, como e quando, e pelo visto Gui já tinha a resposta, e eu não tinha certeza se queria saber.
-Gui vá com seus amigos, preciso ficar um pouco só.-falei me libertando dele e de seu olhar serio, ele logo percebeu que eu desconfiava.
-Não quero te deixar só.-Fala assustado, não era comum eu recusar sua companhia, eu sabia que ele não estava magoado, ele sabia o que acontecia, mas ao mesmo tempo nunca deixávamos um ao outro.
-Quero falar com Helena, sua presença esta me confundindo, preciso ficar com a minha amiga antes que ela se vá.- Falei vendo sua careta, sabia que ele não gostava de me ver sempre com ela,é claro que ele gostava dela, mas não de ser trocado.
-Não me quer?-falou serio, sua voz grave me assustando, não que não tivesse percebido ela se engrossar, mas era sempre tão doce comigo que quase não percebia o quanto a sua voz infantil foi trocada pela de um homem.
Eu suspirei cansada.
-Me deixe, você precisa de seus amigos, e eu da minha, vá antes que eu acabe me irritando com você.-Falei seria e decidida, ele me olhou profundamente, um olhar cortante e ressentido que quase me fez abraçá-lo, mas não o fiz, e ele foi, abalado e irritado ele foi para a chuva e eu corri para o meu quarto, encostei a porta e chorei, chorei tanto por medo do que viria a seguir quanto por desespero por me afastar cada vez mais da minha infância feliz e sadia, por ter pela primeira vez na vida quase brigado com meu amigo, meu Gui.
Chorei tanto que dormi,só acordando quando mais tarde Helena me chamou para jantar, Gui ainda não tinha voltado e me perguntaram onde ele estava,culpada e assustada por não saber a resposta, por pela primeira vez na vida não saber o que dizer sobre o meu par,eu sai correndo e voltei para o quarto para chorar e então Helena me acompanhou, meu pai preocupado e chocado foi para o seu gabinete completamente calado, minha mãe desnorteada foi com a minha irmã para porta esperar ter noticias dele, e Will, mais abalado e desnorteado do que qualquer um deles, por ter mais noção do que qualquer um deles da minha relação com Gui, saiu em busca dele.
Não conseguia mais chorar, estava esgotada mais não com sono, me sentei e olhei a chuva lá fora pela janela do quarto, Helena tinha ido buscar alguma coisa para que eu comesse, e vendo a chuva lá fora, com a dor de cabeça que eu estava por tanto chorar, apenas pulei a janela, sem capa sem nada, com a bota de montaria que sempre usava no lugar de calçados próprios para uma dama, e sendo atingida pela chuva gelada tudo melhorou.
Parecia um dia como qualquer outro em que seguia Gui até as colinas,estava escuro e eu sabia que não devia ir, estava desarmada e sozinha, mais eu não ligava, eu precisava daquilo, precisava esquecer de tudo.
Cheguei até uma a torre, que tinha um grande sino no topo, tocado apenas em épocas de invasões, eu subi e me deitei ali, molhada e com frio fiquei deitada em baixo daquele sino gigante olhando para seu interior, não pensando em nada, apenas ouvindo o barulho da chuva e desejando que o sino caísse sobre mim e me esmagasse, eu merecia, merecia por ser mulher, merecia por não ficar no meu lugar desde pequena e agora estar como a minha pequena desgraça miúda que me mandavam chamar de irmã.
Eu não sei em que momento que parei de conseguir me concentrar na chuva e dormir, só sei que isso aconteceu, eu dormi ali e só acordei no outro dia de manhã, com o sol queimando minha face, me levantei atordoada, sem saber o que tinha acontecido, mas em pouco tempo me lembrei de tudo e apenas me sentei na janela pensando seriamente em pular, e nesse meio tempo, onde eu me decidia se eu pulava e morria ou voltava pra casa e era assassinada começou a chover, titiritando de frio vi alguma coisa se mexer lá em baixo, Não consegui prestar atenção, a chuva embaçava tudo, só sei que em algum momento, bem depois do que pensei ter visto, a porta atrás de mim se abriu, eu não liguei, continuei fitando a chuva e me segurando nas paredes escorregadias, ainda sentada na janela da torre, quem entrou estava logo atrás de mim agora, me puxou e me tirou da janela, me colocou no colo, e mesmo com o cheiro forte de bebida e chuva senti o aroma conhecido, meu Gui estava ali, sem conseguir falar olhei sua face, tremendo como nunca tremi na vida, tendo minhas roupas coladas no corpo e molhadas, não que isso me envergonhasse, afinal tinha 10 anos, e ainda era uma criança, além de que era meu irmão que estava comigo, mas vento, frio, chuva e roupa muito molhada pelo tempo que fiquei não era lá muito agradável, só sei que meu eterno tudo me cobriu com sua capa, molhada, mas me protegendo da chuva, e me levou para fora de lá no colo, semi inconsciente em seus braços, sem falar uma palavra até a nossa casa, não me lembro se tinha alguém nos esperando ou não na porta, porque na metade do caminho perdi completamente os sentidos.